sábado, 15 de outubro de 2011

Filosofia e Medicina sem Humanidade

“Alexander Mitscherlich forjou a expressão "medicina sem humanidade" para denunciar a ausência da dimensão pessoal do homem doente no âmbito da medicina moderna, cujo triunfo assenta exclusivamente na aplicação dos métodos das ciências naturais e, ultimamente, dos métodos tecnológicos: «O médico deixa de adotar a figura do curandeiro, rodeado do mistério dos seus poderes mágicos, para passar a ser um homem de ciência» (Hans-Georg Gadamer).(...)”
http://cyberbiologiaecybermedicina.blogspot.
com/2008/05/filosofia-e-medicina-sem-humanidade.html

Parece estranho e, ao mesmo tempo é revelador, que vejamos a divulgação e a implantação de treinamentos e ações de humanização do atendimento em saúde. Estranho porque a medicina é uma atividade humana destinada a seres humanos. Por que então humanizar? Revelador porque se está sendo preciso humanizar, significa que em algum período da história a prática médica desumanizou-se. Qual foi esse período? Como e por que aconteceu?.
Desde o início da Faculdade de Medicina voltei-me para a Medicina Social (“medicina de pobre” como uma tia muito querida, jocosamente, dizia, e me chamava médico-pé-de-chinelo). Interessei-me por Saúde Pública e Epidemiologia, áreas de muito pouco interesse dos demais colegas – dos 80 que iniciaram a graduação talvez uns 10 voltaram-se para a Medicina Social. Não tivemos uma disciplina voltada para o estudo da Filosofia Médica, o que hoje considero um absurdo, já que estavam sendo formados profissionais que iriam lidar com algo tão delicado e de tanta responsabilidade quanto a vida humana, sem lhes instrumentalizar com fortes bases éticas, legais, morais, políticas, socioeconômicas e espirituais. O que eu sabia disso aos 22 anos? Hoje entendo melhor a crise existencial que enfrentei no 6º ano da faculdade. Pensei até em desistir de ser médico.
Por iniciativa pessoal, e com o auxílio de alguns colegas, construí uma base de compreensão social, política e econômica, situando-me razoavelmente na conjuntura nacional (em plena ditadura militar) e global, o que fortaleceu minha opção de área de atuação. Conseguia compreender que um povo doente (como também analfabeto) é mais facilmente dominado. E quanto mais compreendia, mais me revoltava com as injustiças sociais.
Na Residência em Medicina Preventiva e Social fortaleci minha visão política e social da profissão, mas a real abordagem filosófica da medicina só encontrei na Especialização em Homeopatia. Em ambas encontrei as respostas que hoje me fazem entender porque a medicina desumanizou-se, e a que interesses ela realmente está servindo.
Conheci o autor Ivan Illich na residência em Medicina Preventiva e Social. Foi “amor médico-ideológico” à primeira vista, de minha parte. Identifiquei-me com sua visão política e social da medicina, especialmente quando expõe a verdadeira face da medicina ocidental e capitalista, que transformou a saúde em objeto de comércio e lucro, bem como quando explica em que pontos a medicina é usada pela classe dominante nas relações de poder, na manutenção da dominação e da exploração dos povos.
É dele esta frase que dá início a este post, onde coloco alguns conceitos filosóficos dele e de outros teóricos, que considero importantes para o norteamento de minha prática médica atual:
“A medicina roubou do ser humano a própria capacidade de olhar-se, de cuidar-se, expropriou-lhe a saúde.”
Gilvan Almeida

-Quando Medicina e filosofia convergem, podem fazer progredir a busca do homem em direção a uma imagem unificada dele mesmo e do mundo; quando divergem, essa imagem fica fragmentada, confusa e mesmo absurda.
Pellegrino & Thomasma (A Philosophical Basis of Medical Practice)

-Medicina, então, é todas as três - ciência, arte e virtude sinérgica, integralmente unidas nas atividades diárias do médico. Desarticular um dos membros dessa tríade dos outros é desmembrar a Medicina - cuja característica essencial é a relação especial que une ao outro. Quando isso acontece, aí pode existir um cientista, um artista ou um prático, mas não um médico.
Edmund Pellegrino (The Anatomy of Clinical Judgments)

-A filosofia da Medicina que procuramos é uma filosofia de uma atividade humana identificável, não uma miscelânea das ciências e artes empregadas pela Medicina. Nós afirmamos que a Medicina não é redutível à biologia, à física, à química, ou à psicologia; nem é apenas o que os médicos fazem ou esperam; nem é simplesmente uma ciência rigorosa ou apenas uma arte de fazer o bem em eventos clínicos. Ao invés, mostramos que Medicina é uma forma única de relacionamento.
Pellegrino & Thomasma (A Philosophical Basis of Medical Practice)

-Uma filosofia da Medicina é necessária: para organizar seus crescentes sucessos; para formar um princípio que integre suas divididas especialidades; para oferecer uma explicação racional e científica de seus métodos; e para descobrir a relação entre os sistemas médicos do Oriente e do Ocidente, de modo que cada um possa funcionar em uma comunidade mundial em expansão.
Pellegrino & Thomasma (A Philosophical Basis of Medical Practice)

-O sucesso da Medicina criou uma tensão: o doutor conhece o seu papel de curador das doenças e "esquece" o seu papel como "cuidador" dos pacientes.
Eric Cassell (The Healer's Art)

-A Medicina sofre de uma abundância de meios e de uma pobreza de finalidades.
Pellegrino & Thomasma (A Philosophical Basis of Medical Practice)

-A ciência não é um valor absoluto a que todos os outros estejam subordinados; ela tropeça quando vai de encontro às normas que consagram e protegem a dignidade humana.
Genival Velloso de França (Flagrantes Médico-Legais)

-No entanto, por um processo curioso e paradoxal, é neste instante de maior progresso e de resultados fantásticos, que a Medicina se apresenta em estado de sobressalto, pois sua ética não acompanhou o mesmo ritmo de suas incontestáveis conquistas.
Genival Velloso de França (Flagrantes Médico-Legais)

-Já sabia que a verdade de hoje pode ser o erro de amanhã... Que toda a Arte Médica estando em constante reformulação e reforma, tudo que é atual e moderno é duvidoso e esconde uma mentira ou um engano que os tempos vão tornar aparentes.
Pedro Nava (1903-1984) (Galo das Trevas)

-A medicalização da sociedade pôs fim à era da morte natural. O homem ocidental perdeu o direito de presidir o ato de morrer.
Ivan Illich (A Expropriação da Saúde)

-Atualmente a dor foi transformada em um problema de economia política.
Ivan Illich (A Expropriação da Saúde)

-Ao colonizar uma cultura tradicional, a civilização moderna transforma a experiência da dor. Retira do sofrimento seu significado íntimo e pessoal e transforma a dor em problema técnico.
Ivan Illich (A Expropriação da Saúde)

-É o ritual médico e seu mito correspondente que transformam a dor, a enfermidade e a morte, experiências essenciais a que cada um deve se acomodar, em uma seqüência de obstáculos que ameaçam o bem-estar e que obrigam cada um a recorrer sem cessar a consumos cuja produção é monopolizada pela instituição médica.
Ivan Illich (A Expropriação da Saúde)

-A Medicina não tem somente funções técnicas: ela constitui-se, entre outros, num sinal de status. Um dos principais objetivos das despesas médicas é produzir satisfações simbólicas que as pessoas apreciam pelo seu preço.
Ivan Illich (A Expropriação da Saúde)

-A política da saúde, como é quase sempre entendida, coloca sistematicamente a melhoria dos cuidados médicos antes dos fatores que permitiriam exercitar e melhorar a capacidade individual de cada um em assumi-la.
Ivan Illich (A Expropriação da Saúde)

-É o volume global dos transportes que entrava a circulação; é o volume global do ensino que impede as crianças de expandirem a sua curiosidade, sua coragem intelectual e sua sensibilidade; é o volume sufocante das informações que ocasiona a confusão e a superficialidade, e é o volume global da medicalização que reduz o nível de saúde.
Ivan Illich (A Expropriação da Saúde)

-O subjetivo não é menos real ou menos importante em Medicina, mas simplesmente um diferente tipo de realidade.
Eric Cassell (The Healer's Art)

-Uma cultura foi dominante sobre todas as outras - a cultura da Medicina científica... A maneira científica de pensar retirou dos doutores em treinamento, a maneira humanística de pensar a respeito de seus pacientes.
Eric Cassell (The Healer's Art)

-Mas, cada vez mais, as respostas são para as patologias, e a patologia não é senão uma parte da doença.
Eric Cassell (The Healer's Art)

-A saúde geral da população não é diretamente dependente dos serviços médicos.
Eric Cassell (The Healer's Art)

-Na medida em que o especialista estreita os limites de seu campo ele, de algum modo, torna-se menos um médico e mais um técnico.
Edmund Pellegrino (The Healing Relationship)

-Estar em boa saúde é poder cair doente, e se recuperar é um luxo biológico.
Georges Canguilhem (O Normal e o Patológico)

-Mais do que a opinião dos médicos, é a apreciação dos pacientes e das idéias dominantes no meio social que determina o que se chama de "doença".
Georges Canguilhem (O Normal e o Patológico)

FONTE: http://www.luizrobertolondres.com.br/ecos/citacoes.asp?tema=12

Nenhum comentário: